quarta-feira, setembro 25, 2013

UMA PONTA DE PECADO E AR FRESCO

Nunca. As coisas nunca são o que parecem. Basta o exemplo insofismável de um filme, o indecentíssimo "The Seven Year Itch", que Billy Wilder realizou por cima e por baixo das curvas de Marilyn Monroe. Ela é a vizinha de um tipo casado que, por obrigações profissionais, não vai de férias com a família. Sózinho, em Nova Iorque, o homem começa a fantasiar a superlativa vizinha. Vai com ela ao cinema. E já voltam. É Agosto, torra-se em Nova Iorque. Mesmo, ou sobretudo, à noite, quando se caminhava depois do cinema.
Marilyn, ou a personagem que Wilder lhe deu por ela ser Marilyn, precisa de uma ponta de gelo, da carícia de uma brisa fresca. "Brisa-me", pede ela à escaldante noite de Agosto. Passa pela grade de uma saída de ar do Metro e não resiste: dá dois passos na direcção errada. O sopro que vem lá debaixo levanta-lhe o inocente vestido branco e vemos o que o cinema nunca mostrara, a alumiada e nua lufada de ar fresco.
A lufada de ar fresco ganha. digamos, uma aristotélica densidade ontológica - vida própria, se simplificarmos - e desenha as pernas, as coxas de Marilyn, até ao que brasileiramente chamaria calcinha, enfunando-lhe com firme delicadeza o vestido. Bem sei que o mundo continuou - morreu Kennedy, a União Soviética implodiu, nasceu a senhora Merkel - mas também sei que a doçura desse sopro, a livre nudez daquelas pernas, as pregas gregas do vestido em vela, se fixaram, imutáveis, arquetípicas, fora do tempo e do espaço, com o gracioso consentimento já não sei se de Deus se de Einstein.

E, todavia, as coisas não são nunca o que parecem:

1. Não vemos, no filme, a multidão de pessoas que se juntou na Lexington Avenue para assistir às filmagens da cena.

2. Não vemos, na multidão, Joe DiMaggio, o marido de Marilyn. Cada vez que, solto e cândido, o vestido dela se levantava a fazer adeus à multidão, ele torcia a cara num esgar sofista. Tantas vezes Wilder repetiu a cena, que DiMaggio se pôs aos gritos com Marilyn. Dois meses depois ela pedia o divórcio, acusando-o de crueldade mental.

3. Para soprar o vestido, Wilder montou um gigantesco ventilador por baixo. Houve uma portuguesíssima cena de sopapos entre o pessoal da produção para se decidir quem ia lá abaixo ligar e desligar o ventilador, dedo no interruptor, olhos apontados ao paraíso.

4. Sem querer negar a confiança ontológica de Aristóteles, note-se que a cena é um poderoso argumento a favor do cepticismo com que Platão apreciava o valor da informação dada pelos sentidos: o ar que vinha do Metro e ascendia, polegada a polegada, por Marilyn acima, era ar quente - tudo menos a fresquíssima brisa de que a personagem precisava e deveras fingia sentir.

As coisas nunca são o que parecem. Uma lufada de ar fresco pode muito bem incendiar o mundo.

(Manuel S. Fonseca na revista Atual do Expresso, 10 de Agosto de 2013)

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