domingo, setembro 29, 2013

FAMILY LIFE (1971)

VIDA EM FAMÍLIA
Um Filme de KENNETH LOACH


Com Sandy Ratcliff, Bill Dean, Grace Cave, Malcolm Tierney, Hilary Martyn, etc.

GB / 108 min / COR / 4X3 (1.37:1)

Estreia nos EUA a 2710/1971 
(New York Film Festival)
Estreia na GB em Dezembro de 1971
Estreia em Portugal: Lisboa, cinema Estúdio 444, 5/10/1973



Falar de psiquiatria ou de quaisquer outras alterações do comportamento do indivíduo no processo de se relacionar com o meio que o rodeia, implica ter a noção perfeita dos limites que o assunto apresenta. Ou antes, da dificuldade de delimitar completamente as capacidades da mente humana, de saber onde termina a normalidade e começa o patológico, face às reacções mais ou menos inconvencionais que cada um revela perante as circunstâncias que perturbam o seu equilíbrio instável. O apontar para a terapêutica de grupo, como tentativa de relacionar o doente psiquiátrico com indivíduos em idêntica situação e de melhor permitir a auto-compreensão do seu mundo, sofisticado e algo irreal, tem-se tornado ponto forte das polémicas sobre o assunto, pela revolução total de meios que ela simboliza.

Também o cinema se tem tentado debruçar, ao longo dos anos, com maior ou menor objectividade sobre os factos, tendo dado as suas diferentes visões da forma como a patologia psiquiátrica tem de ser encarada pelo mundo e também como ela vê tudo o que gira em torno de si. Filmes como "Shock corridor" (1963) "Lilith" (1964), "Morgan: a suitable case for treatment" (1966), "One flew over the cuckoo's nest" (1975) ou este "Family life" (1971) foram, nos anos 60 e 70, alguns dos filmes que tornaram populares os temas psiquiátricos, abordando diversos exemplos de como o cinema se pode referir à mente humana, e à forma como ela abandona o caminho da normalidade, sente e vê os outros e se torna irrecuperável.
Quem é capaz de definir o que são os loucos? Será que as simples circunstâncias de haver um tipo de comportamento pouco habitual, que foge às regras estabelecidas pela sociedade, é suficiente para fazer o "terrível diagnóstico" e a subsequente marginalização? Não serão os loucos equilibrados no seu próprio desequilíbrio, apenas se manifestando agressivamente quando sujeitos à repressão das estruturas? Quem não reage assim, afinal? Este filme de Ken Loach fez um certo furor aquando da sua estreia em Lisboa, em Outubro de 1973. A história refere uma jovem convulsionada por problemas familiares, impossibilitada de expor a sua personalidade e de ser ela própria, pela notória incompreensão dos pais, rigidamente apegados à inquebrável tradição.
Em causa são postas as insuficiências duma terapêutica integralmente farmacológica ou traumatizante, o facto de a falta de conhecimento dos indivíduos (pais, neste caso) destes problemas, ser muitas vezes o golpe de misericórdia no desequilíbrio total do, até então, apenas instável, e depois convertido em paciente, pela força de um paternalismo cego. O estádio final duma jovem apenas a sofrer as instabilidades da adolescência é um triste pesadelo. A sociedade, a tradição, o auto-convencimento, destruíram a vida nascente. Ficou apenas a apatia, a esquizofrenia. Ao longo do filme nota-se um esquematizar evolutivo de concentricidades de que Janice é apenas o núcleo central. À sua volta giram constantemente personagens sobre personagens, incapazes de se tocar, condenadas ao seu próprio isolamento.

É impressionante como Janice é esmagada nas suas convicções: tão pressionada que acaba por ser conduzida à admissão da sua "culpabilidade". Este sentimento de culpa que conseguem inculcar-lhe, constitui a forma mais requintada de espezinhamento, a forma mais cinicamente sádica, de entre todas de que ela é objecto. Desde os primeiros indícios "nevróticos" que, em nome e defesa do bem de Janice, os pais agridem e destroem os seus ideais, a insultam, a esbofeteiam e a acabam por oferecer ao "campo de ensaios" que se revela o Hospital.

Para o bem de Janice, ela é submetida a tratamentos de choques eléctricos e segrecionada. Para o bem de Janice, as enfermeiras cerceiam com sorrizinhos complacentes a sua vontade. Para o bem de Janice, ela acaba por ser reinternada no inferno institucionalizado de onde apenas Tim, o namorado, ousara arrancá-la. Para o bem de Janice, ela acaba por ser definitivamente marginalizada da sociedade que tanto se "preocupava" com o seu futuro. Para o bem de Janice é, enfim, a frase-chave, a palavra de ordem com que ela é submetida às "verdades-puras" dos mais velhos, apenas por isso: pela idade deles, pela sua "experiência", por deterem o privilégio de "saber sempre o que é melhor" para ela.
Não é difícil perceber-se a convulsão que "Family Life" causou na época em que foi filmado, sobretudo face às convicções pequeno-burguesas da sociedade castradora de então. Uma sociedade alicerçada em sagrados valores morais, teimando em defender a sua esclerose, a sua podridão, a sua inépcia para responder ao protesto das vítimas por ela criadas. Hoje em dia, em pleno século XXI, "Family Life" é muito bem capaz de se ter tornado um filme perfeitamente datado, um objecto estranho não compreendido pelas novas gerações. A não ser que, no fim de contas, a sociedade não tenha mudado assim tanto nestes últimos 40 anos.

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