terça-feira, dezembro 14, 2021

DUEL (1971)


UM ASSASSINO PELAS COSTAS
Um filme de STEVEN SPIELBERG




Com Dennis Weaver, Jacqueline Scott, Eddie Firestone, Lou Frizzell, etc.

EUA / 90 min / COR / 4X3 (1.33:1)

Estreia nos EUA a 13/11/1971 (TV)
Estreia em PORTUGAL a 3/5/1973



David Mann: «Come on you miserable fat-head, 
get that fat-ass truck outta my way!»

A ascensão de Steven Spielberg foi meteórica, como todos o sabem. Começa a brincar ao cinema fazendo pequenos filmes de Super 8 entre os doze e os catorze anos. Aos dezoito experimenta os 35 mm numa curta-metragem de 24 minutos, que lhe abre de imediato as portas do profissionalismo. O título é "Amblin'" (nome que muitos anos depois atribuirá à sua empresa de produções) e vale-lhe um contrato para a televisão, onde, aos 21 anos, dirige Joan Crawford, num episódio ("Eyes") de uma série de sucesso, "Night Gallery". Mantém-se no mundo televisivo por mais alguns anos e é aí que roda o seu primeiro filme, aos 24 anos: este excitante "Duel", cujo êxito e qualidade impõem uma exploração comercial (sendo para isso aumentado de 74 para 90 minutos) nas salas de cinema de todo o mundo, incluindo Portugal, onde o filme se estreia a  3 de Maio de 1973.

Realizado com parcos recursos (que, de certo modo, o caracteriza como um filme independente), "Duel" parte de um argumento original de Richard Matheson (o mesmo de "The Incredible Shrinking Man", aqui já abordado recentemente) e desenvolve-se segundo um esquema simples mas de grande intensidade dramática. David Mann (Dennis Weaver, conhecido actor televisivo, falecido em 2006 com 81 anos), é um caixeiro-viajante que conduz calmamente o seu Plymouth Valiant (matrícula 149 PCE) pelo deserto da California. É pleno Verão, o dia está quente, e o rádio do carro vai debitando as notícias do dia. David tem uma certa pressa em chegar ao seu destino, para poder regressar a casa e fazer as pazes com a mulher, com quem se desentendeu nas vésperas da partida. Subitamente aparece-lhe pela frente um gigantesco camião-cisterna, a expelir um fumo negro e desagradável. Logo que pode, David ultrapassa-o, livrando-se assim da incómoda presença. Mas o condutor do camião sente-se de algum modo "picado" e volta a colocar-se na dianteira.

O que parece ser de início um jogo do "gato e do rato" (quantos de nós já não experimentámos algo semelhante por essas estradas fora?), vai progressivamente tomando proporções alarmantes, a ponto de obrigar David a lutar pela própria vida para escapar ao lunático que se encontra ao volante do camião. Lunático do qual nunca se vê o rosto, ao longo de todo o filme, apenas um braço ou uma silhueta distante. Spielberg filma o seu assassino apenas como uma presença, medonha e ameaçadora, que parece não recuar perante nada para atingir o seu objectivo: atirar David para fora da estrada, destruí-lo sob o seu poderoso rodado, cilindrá-lo a todo o custo. David tenta tudo para se furtar ao perigoso confronto: a abordagem directa, a ajuda de terceiros, a comunicação à polícia, inclusivé usa o subterfúgio ou a fuga temporária. Nada resulta, a ameaça continua bem presente e cada vez mais agressiva. Por fim, esgotadas todas as tentativas, David não tem outro remédio senão arregaçar as mangas, fazer das tripas coração e enfrentar aquele autêntico Golias da estrada.

Com "Duel" (óptima tradução em português para "Um Assassino Pelas Costas"), Spielberg conduz-nos ao mundo do "realismo fantástico", onde o que parece impossível adquire plausibilidade, e a realidade destapa uma outra face, absurda e inquietante. Apelidado de "primeiro filme-modelo" por François Truffaut, aplaudido por Alfred Hitchcock e David Lean, "Duel" é cinema do princípio ao fim, sentindo-se a já segura mão de Spielberg, logo desde as primeiras imagens, como recorda Clélia Cohen, crítica dos Cahiers du Cinéma entre 1997 e 2004: «Na escuridão total, ruídos de passos, o bater de uma porta, um motor que arranca. O écrã ilumina-se, mostrando o fundo de uma garagem, da qual o espectador sai em marcha atrás, para a rua. Os primeiros cinco minutos de filme descrevem o trajecto dum veículo, onde a câmara ocupa o lugar do condutor, desde as ruas calmas de um subúrbio com vivendas até à saída da cidade, e a chegada a uma auto-estrada da Califórnia. Tudo isto em planos que se fundem uns nos outros, ao som do rádio.

Este movimento inaugural majestoso não é apenas a passagem geográfica da cidade para o deserto, é um mergulho numa idade primitiva da América, em que se faziam perseguições a cavalo e "duelos ao sol". É quase um flashback. Excepto que aqui o confronto não é homem contra homem, mas de homem-carro contra camião sem rosto. Esta "desumanização" do condutor do camião é filmada como um velho animal raivoso, ruidoso e ferrugento - o primeiro desse tipo de monstros (tubarões, dinossauros, Tripods) que povoarão o cinema de Spielberg. Quando o camião "morre", no final do filme, é-lhe acrescentado um efeito sonoro singular, uma espécie de grito que se escapa do peso-pesado quando este cai por terra: um estertor de dinossauro?

Há aqui uma ponta de insolência de cineasta ambicioso e com pressa de se distanciar, ao volante do seu belo Plymouth, das figuras e dos métodos de um cinema feito por dinossauros prestes a chegar ao fim do seu tempo. Cada plano deste filme filmado em dezasseis dias revela um instinto orgânico da linguagem cinematográfica. A pureza plástica (o vermelho do automóvel, o azul do céu, os ocres da paisagem), aliada à sensação permanente de progressão e velocidade, contribui para a nitidez rutilante da encenação. Mas esta perfeição rectilínea é atravessada por pulsões selvagens e absurdas que elevam "Um Assassino Pelas Costas" muito para além de um exercício de estilo brilhante.

É, paradoxalmente, mais do lado da identidade do herói (um homem vulgar, perseguido de forma arbitrária) do que do lado da identidade do perseguidor (que permanece misteriosa até ao fim), que é necessário procurar a chave do mistério. Compreendemos, quando Mann telefona à esposa a partir de uma estação de serviço, no início do filme, que o casal se separou essa manhã com uma discussão. Portanto, a voz que ele escutava na rádio a queixar-se da megera da esposa era a sua própria voz, num monólogo interior. A longa etapa do jantar à borda da estrada, na qual Mann observa febrilmente cada um dos cowboys encostados ao balcão, imaginando cada um deles como o seu perseguidor, roça o delírio paranóico. 

E as crianças do autobus que lhe fazem caretas pelo vidro de trás, surgem-lhe como pequenos gnomos turbulentos. Toda a aventura de "Um Assassino Pelas Costas" pode, portanto, ser lida como uma construção mental de um neurótico, vítima frustrada do american way of life (casa, esposa, filhos), um sinal da sua loucura larvar. A paisagem que se desnuda progressivamente, perdendo a sua beleza, evoca um percurso rumo ao vazio que introduz um grau de parentesco inesperado com os westerns existenciais de Monte Hellman, "Ride in the Whirlwind" [1965] ou "The Shooting" [1966].»
Os anos 70 documentam assim o arranque em força da filmografia de Spielberg: "Duel" (1971), "The Sugarland Express" (1974), "Jaws" (1975) e os "Close Encounters of the Third Kind" (1977) estão entre os seus melhores filmes. A partir daqui Spielberg irá oscilar entre o óptimo: a trilogia de Indiana Jones (1981-1984-1989), "E.T." (1982), "Always" (1989), "Shindler's List" (1993), "Catch Me If You Can" (2002) e "The Terminal" (2004) e o francamente medíocre ou simplesmente desinteressante. A partir de certa altura nota-se no realizador norte-americano uma certa tendência para, acima de tudo, agradar ao "seu" público, esquecendo-se que no cinema existem vários géneros de público. No que me diz respeito regresso sempre sorridente às suas primeiras obras (onde este "Duel" sempre ocupou lugar de destaque), o que não me acontece com os filmes mais tardios.


CURIOSIDADES:

- "Duel" foi rodado num período de 22 dias (de 13 de Setembro a 4 de Outubro de 1971) e sempre em exteriores

- O edifício do "Chuck's Cafe" ainda se mantém, sendo hoje um restaurante de comida francesa. Localiza-se poucos kms a sul de Acton, Califórnia

- Spielberg voltou a usar Lucille Benson como proprietária de uma estação de serviço no seu filme "1941". De igual modo o casal de idosos do carro que Mann faz parar, aparece de novo no filme "Close Encounters of the Third Kind"

- Quando Carey Loftin, o actor que guia o camião perguntou a Spielberg qual a motivação para atormentar o condutor do carro, este respondeu-lhe: «You're a dirty, rotten, no-good son of a bitch», ao que Carey respondeu: «Kid, you hired the right man»



- Spielberg decidiu-se por contratar o actor Dennis Weaver para o papel de David Mann depois de o ter visto no filme "Touch of Evil", de Orson Welles

- Filmado para a televisão americana, "Duel" só foi exibido pela primeira vez em salas de cinema quando se estreou na Europa (numa cópia com mais 16 minutos do que a versão original, a qual se mantém até aos dias de hoje)

- Spielberg era um fã de Richard Matheson por causa da sua contribuição para a série televisiva "The Twilight Zone"

- A cena final (a queda do camião no precipício) teve de ser rodada em apenas um take, por causa do baixo orçamento do filme: 450 mil dólares

- "Duel" recebeu o Grande Prémio do Festival Fantástico de Avoriaz e também um Emmy pela montagem do som. Foi ainda nomeado para um Globo de Ouro, na categoria de filmes rodados para televisão






3 comentários:

O Narrador Subjectivo disse...

Grande artigo sobre um grande filme.

http://onarradorsubjectivo.blogspot.pt/

Unknown disse...

Boa resenha. Continua a ser um dos meus filmes preferidos do Spielberg.

Anónimo disse...

Vi esta pequena pérola do cinema de suspensa pela primeira vez em 1975 e deixou-me com os nervos em franja. Hoje tenho uma cópia em DVD que revê regularmente mas agora já sei que o filho da p.... vai ter o merecido castigo o que não retira o prazer de o ver novamente despenhar-se pelo barranco abaixo em slow motion ;)