terça-feira, novembro 19, 2013

BLOW-UP (1966)

A HISTÓRIA DE UM FOTÓGRAFO
Um filme de MICHELANGELO ANTONIONI

Com David Hemmings, Vanessa Redgrave, Sarah Miles, John Castle, Jane Birkin, Gillian Hills, Peter Bowles, Veruschka, etc.
GB / COR / 111 min / 16X9 (1.85:1)
Estreia nos EUA a 18/12/1966
Estreia em PORTUGAL a 9/1/1968



"Sometimes, reality is the strangest fantasy of all"

Único e surpreendente sucesso comercial de Antonioni, e o primeiro realizado fora de Itália, “Blow-Up é um dos filmes que melhor retrata a Swinging London dos anos 60. Muito embora pudesse ter sido rodado em Paris ou Nova Iorque a capital inglesa teve na altura a preferência do aclamado realizador italiano devido à nova mentalidade instalada e que então revolucionou todo um comportamento e estilo de vida. Carnaby Street e os Beatles constituíam o oráculo que ditava as leis na cultura pop desses anos, e Antonioni deixou-se imergir voluntariamente na cena londrina, com as suas cores pop, a sua música e a sua liberdade sexual. No entanto, e apesar da modernidade que envolvia “Blow-Up”, toda a ambiguidade do universo de Antonioni se encontrava presente até ao mais ínfimo dos pormenores – a incomunicabilidade e impossibilidade de relações entre as pessoas ou a alienação no seio de uma sociedade de consumo prolongavam as ideias que o mestre italiano já nos dera a conhecer nos seus filmes precedentes. O homem, cada vez mais afastado da realidade que o envolve, oscila nas suas convicções e aliena-se progressivamente na indiferença à sua volta.

Thomas (David Hemmings), um fotógrafo jovem que domina o universo da moda, capta casualmente algumas imagens num parque londrino. Mais tarde, durante o processo de revelação do rolo e espicaçado pela insistência da mulher retratada que quer a todo o custo reaver os originais da película, Thomas apercebe-se que testemunhou sem querer um assassínio.  Este fio de intriga, vagamente policial, poderia conduzir facilmente a um thriller como tantos outros. Mas não nas mãos de Antonioni. O essencial do enredo é paralelo à situação atrás descrita e interessa-se sobretudo pelas relações de Thomas com o mundo à sua volta, acentuando cada vez mais o desequilíbrio entre essas relações. É no ampliar (daí o título do filme, “Blow-Up”) do frame principal, onde o amontoadao de pontos brancos e negros aguçam a curiosidade de Thomas, que este vai começar a procurar, dentro de si, as relações existentes e as causas possíveis. A fotografia, uma verdade bidimensional irrefutável, só assume o seu completo significado depois de convenientemente interpretada.

De início não se vê na fotografia mais que uma mancha difusa e amorfa; aumentando-a, distingue-se uma figura que poderia bem ser humana; um aumento maior apresentará como simples novidade uma tonalidade diversa. Isto é tudo. E o mesmo sucede na vida quotidiana, onde acabamos por nos perder na encruzilhada de dois infinitos. Quanto mais nos aproximamos do mistério que tínhamos impressão de dominar, mais nos desviamos e começamos a recusar compreendê-lo. E assim por diante, até chegarmos a duvidar da própria realidade das coisas e dos seres. Para expressar esta fugacidade do inapreensível, essa irrealidade do quotidiano, Antonioni recorre a uma montagem que soube fundir sabiamente a extrema fragmentação numa extrema fluidez. Os planos são curtos, escamoteados, mal entrevistos; a câmara torna-se viajante, observadora reptante que desliza sinuosamente até ao coração dos enigmas. Depois, à medida que a sensação se escapa, que a curiosidade decresce, que a indiferença progride, a referência espacial desmembra-se, desarticula-se em fragmentos dispersos, para adquirir a lassidão de um amanhecer sem promessas, dissipando-se a pantomima em mudo escárnio da actual condição humana.

É claro que o crime nunca será devidamente desvendado até final, nem é isso que importa em “Blow-Up” – o filme concerne todo um processo de uma investigação e não o seu resultado. A máquina fotográfica é apenas um instrumento de diversão para Thomas, não um polígrafo em busca da verdade. Porque mesmo que ele se visse na posse dessa verdade ela não teria grande impacto na sua vida dada a indiferença reinante à sua volta. Ao contrário do que é característica habitual nas obras aparentadas com a tragédia humanista herdada da antiguidade, assistimos aqui ao surgir do esquecimento, entramos numa humanidade que se não resgata nem liberta, que se desembaraça do trágico recusando compreender (ou talvez renunciando compreender) uma realidade, da qual comprova a sua escassa credibilidade.


Um pouco como “La Dolce Vita” de Fellini, “Blow-Up” dirige os seus holofotes para o vazio da sofisticação mundana. Roma cede o lugar a Londres e o paparazzi é substituído pelo beatnick. Mas a incompreensão dos motivos que regulam as vidas dos intervenientes em ambos os mundos é muito semelhante. E aqui, no filme de Antonioni, essa incompreensão é levada aos limites do non-sense quando no final Thomas devolve uma bola imaginária para um jogo de ténis que alguns jovens mimos se entretêm a jogar. A expressão na cara de Thomas denota um enorme cansaço ao participar naquele jogo de aparências, num mundo onde as ilusões sufocam as realidades. Não existem raquetas nem bola, mas Antonioni dá-nos a ouvir os sons típicos de um jogo de ténis. E por fim faz desaparecer o próprio Thomas de cena, deixando sómente o parque diante dos nossos olhos.

CURIOSIDADES:

- “Blow-Up” é o primeiro filme britânico a mostrar a nudez frontal feminina. De modo a evitar os censores do chamado “Production Code”, a MGM criou uma empresa fantasma chamada “Premiere Productions” para produzir o filme
 
- O personagem principal Thomas foi livremente inspirado na vida de dois fotógrafos londrinos, David Bailey e Terence Donovan.
 
- O grupo que toca no night-club são os Yardbirds, ainda com Jimmy Page e Jeff Beck na respectiva formação. A primeira escolha de Antonioni teria sido os Velvet Underground, que por razões contratuais não puderam participar no filme.
 
- Todas as fotografias que aparecem no filme são da autoria de Don McCullin. A máquina fotográfica usada por David Hemmings é uma Nikon F SLR. Apesar de já se encontrar no mercado desde 1959, foi a publicidade obtida por este filme que fez disparar as vendas em todo o mundo, tornando-a de longe no modelo mais vendido naqueles últimos anos da década de 60.
 
- “Blow-Up” e Antonioni foram distinguidos com variadissimos prémios, entre eles a “Palma de Ouro” do Festival de Cannes




A BANDA-SONORA:

PROVA DOCUMENTAL

Ele é um menino elegante, calças brancas e camisas impecáveis, vive num rés-do-chão espaçoso e escassamente mobilado, uma casa-estúdio, um pouco psicadélica e bastante cool. É um rapaz famoso e convencido, tem fãs que o seguem, mas mostra-se emproado, entediado, agreste. Trabalha como fotógrafo de moda, rodeado de rapariguinhas lindíssimas e seminuas, e dorme com algumas. Contudo, é brusco e autoritário com as manequins, anda tão neurasténico que até de mulheres bonitas se cansou: «You look at them and that’s that.» “Blow-Up”, que em português se chamou “História de um Fotógrafo”, é um filme de uma “sensualidade fria”, como reconheceu o cineasta, Michelangelo Antonioni. Embora com um ou outro segmento mais “audaz” (há uma sessão fotográfica com a modelo Veruschka que é quase um coito simulado), “Blow-Up” não pretendeu chocar, nem sequer documentar o fenómeno Swinging London, com boémias, manifs, os Yardbirds, orientalismos e cannabis. Antonioni disse apenas que os miúdos estavam à procura de “novas maneiras de serem felizes”, e que isso lhe parecia bem.

Mas se “Blow-Up” não é um documentário, também não se parece com as ficções anteriores do italiano. Uns mimos de cara pintada de branco que invadem a cidade, versão carnavalesca da emancipação dos costumes, anunciam bem esse contraste com a austeridade de “A Aventura”, “A Noite” ou “O Eclipse”. Mas mantêm-se o fascínio paisagístico, a doença dos sentimentos, um certo desinvestimento nos actores enquanto actores. O fotógrafo anda de Rolls ou a pé, e vemos infindáveis parques verdes, ubíquas cabinas telefónicas vermelhas, ruas imundas ou chiques, arquitectura brutalista, e um eterno céu cinzento. Em vez das relações “duais” da trilogia, o sentimento em causa é o confronto do indivíduo com a realidade. E os actores têm presença, valem pela sua presença, David Hemmings quase bonito e muito inquietante, Vanessa Redgrave (uma das fotografadas) de olhos espantados e postura aristocrática. É isso que importa, a superfície das coisas, e os seus enganos.

O fotógrafo está a trabalhar num álbum documental sobre as vidas de londrinos operários, descontentes, desesperançados. Quer, no entanto, fechar com uma imagem que transmita uma certa “tranquilidade”. Anda por todo o lado à procura dessa ocasião, e num dia cheio de luz, num dos inúmeros parques londrinos, segue um casal, Redgrave e um homem mais velho, que parecem em esplendor na relva. O fotógrafo porta-se como um paparazzo, esconde-se no meio dos arbustos e atrás de árvores. Mas a mulher vê-o, vai atrás dele, diz que ele não tem direito a fotografá-la. Ele responde: «Eu sou fotógrafo». Preocupadíssima, ela descobre a morada dele, vai ter com ele, e diz: «Essas fotos vão estragar-me a vida». «E então?» Ela quer as fotos de volta a qualquer preço. Incluindo o mais óbvio.

 Depois o fotógrafo engana-a e dá-lhe um rolo diferente. E vai investigar o que se passou de facto. Talvez aquela mulher estivesse com o amante, mas o aparente idílio seria mesmo um idílio? Ele revela as fotografias, aumenta-as, afixa-as na parede, e organiza-as segundo uma ordem “narrativa”, como na montagem cinematográfica. Está obcecado com “qualquer coisa”, uma alegria no rosto dela que talvez seja pânico, um olhar que se dirige para um ponto de fuga, umas manchas na folhagem que talvez desenhem uma figuras. O fotógrafo vê as fotos, uma a uma, à lupa, tira fotos das fotos, e as imagens parecem-lhe ou pontilhistas ou abstractas. Um amigo pintor explica que os seus quadros também “não têm um sentido”, mas que depois ele se agarra a determinado indício, torna-se detective do seu próprio trabalho, e encontra um sentido: hipotético, falível, aceitávelO fotógrafo não é insensível a este argumento, ele até gosta de coisas belas e estranhas, e compra objectos bizarros, como hélices de aviões. Mas o mistério destas fotos consome-o. Ele quer reconstruir o que aconteceu, quer saber o que viu, o que é visível e o que é “o visível”. A sua dúvida é epistemológica, e “Blow-Up” é um dos trabalhos mais radicais sobre esse tema desde os escritos de Berkeley. O cineasta disse: «O meu problema (…) era o de recriar a realidade de uma forma abstracta», acrescentando que também ele conhecia a realidade fotografando-a, de modo que tinha todo o interesse em perceber a dialéctica entre fotografia e realidade.








“Blow-Up” inspira-se vagamente num conto de Julio Cortázar, adaptado pelo cineasta e pelo grande Tonino Guerra, e com diálogos, cortantes e entrecortados, do dramaturgo Edward Bond, o que é dizer muitíssimo. Tem uma incrível e rigorosíssima beleza visual e auditiva, um contraste cromático e uma montagem tão nervosa quanto o fotógrafo. Ele desconfia de que houve um homicídio, quer saber se morreu alguém, não importa quem, “alguém”. E volta ao parque em busca de um cadáver que está ou não está, esteve ou não esteve. O crítico Peter Brunette comentou este enigma escrevendo que “Blow-Up” não nega a existência de um sentido mas suspeita que o “sentido” é uma construção social. É por isso que a última cena é extraordinária: um grupo de mimos joga ténis num court real mas com uma bola invisível; a certa jogada, a bola “voa” para fora do campo; e os mimos pedem ao fotógrafo que lhes devolva a “bola". Ele quase nem hesita em entrar no jogo, porque aprendeu algumas coisas, ou desaprendeu tudo o que sabia, sobre a verdade.

(Pedro Mexia na revista Atual do semanário Expresso, 16/11/2013)

2 comentários:

Billy Rider disse...

Este é daqueles filmes um pouco à deriva, que tudo sugere e nada explica e que no entanto exerce sempre um certo fascínio no espectador. Foi considerado, na sua estreia, o exemplo acabado do filme moderno, avant-garde, e apesar de muito boa gente não ter percebido patavina do que se passava na tela, tornou-se um grande êxito junto do público (e também da crítica). Hoje em dia não perdeu um único frame do seu charme. E a história da Nikon F é mesmo verídica. Não me lembro se influenciado ou não pelo filme (provavelmente inconscientemente), mas a verdade é que eu próprio também tive uma.

Álvaro Martins disse...

Não é o meu preferido do Antonioni mas sim é um grande filme. A análise das relações era tema recorrente em Antonioni e embora aqui fuja um pouco da crítica ao absurdismo da burguesia e suas inter-relações a que recorria nos seus primeiros filmes, a verdade é que essa crítica também lá está (mais camuflada)e sim, como disseste, aos prazeres mundanos como o Dolce Vita.