terça-feira, agosto 17, 2010

A CLOCKWORK ORANGE (1971)

LARANJA MECÂNICA
Um filme de STANLEY KUBRICK

Com Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates, Warren Clarke, Adrienne Corri, James Marcus

GB-EUA / 136 min / COR / 
16X9 (1.66:1)

Estreia nos EUA a 19/12/1971
Estreia na GB a 13/1/1972
Estreia em Moçambique: 27/7/1974 
(LM, cinema Scala)
Estreia em Portugal a 29/11/1974 
(Cinemas Castil e Império)



Alex: «Viddy well, little brother. Viddy well»


“As aventuras de um jovem cujos principais interesses são a violação, a ultra-violência e Beethoven"

Assim rezava a publicidade a este pesadelo Orwelliano capturado em filme por Stanley Kubrick. O realizador acrescentava tratar-se de uma sátira social sobre o condicionalismo psicológico, um conto de fadas sobre o castigo, enfim uma história construída à volta de um mito fundamental da natureza humana. Mas o cinéfilo mais elementar sabia já na altura que as explicações pouco importavam. O que interessava, realmente, em primeiro e último lugar, era que se tratava de um filme de Stanley Kubrick. Tudo o mais era acessório.

Deve ter sido o filme por cujo visionamento mais esperei (e desesperei) em toda a minha vida. E que mais dinheiro me fez saír das algibeiras. Depois de uma ante-estreia nos EUA, em 19 de Dezembro de 1971, o filme faria a sua estreia comercial em Londres, logo no início de 1972, a 13 de Janeiro, quase quatro anos depois da estreia do último Kubrick, o também inesquecível “2001 Odisseia no Espaço”.

Os ecos do estrondoso êxito depressa chegaram aos quatro cantos do mundo, inclusivé, claro, a Moçambique, onde então eu me encontrava a viver. Tendo já, nessa altura, uma admiração ilimitada pela obra conhecida do realizador (por causa da sua “Lolita”, “Dr. Strangelove”, “Horizontes de Glória” e acima de todos o já citado “2001”), comecei a ler sofregamente tudo quanto conseguia encontrar sobre o novo filme o qual, sabia-se então demasiado bem, nunca iria ser visto em telas portuguesas.

O tempo passava, a lenda crescia e a vontade de ver aquele filme passava a obsessão. Até que no Verão de 73 vim de férias à metrópole e a distância para Inglaterra reduziu-se drasticamente. Era chegada a altura, até porque já corriam rumores que o filme iria sair de cartaz brevemente devido a todo o tipo de pressões a que fora sujeito durante aquele ano e meio de exibição em terras de Sua Majestade. Finalmente, uma quinta-feira, dia 30 de Agosto de 1973, apanhava o avião rumo a Londres. E no dia seguinte, logo ao início da tarde, dirigi-me ao local onde o filme estava a ser exibido. Era um complexo de três ou quatro pequenas salas chamado Cinecenta, não muito longe de Picadilly Circus. Comprei o bilhetinho mágico e sentei-me. A grande espera tinha chegado ao fim.

«There was me, that is Alex, and my three droogs, that is Pete, 
Georgie, and Dim, and we sat in the Korova Milkbar trying 
to make up our rassoodocks what to do with the evening, 
a flip dark chill winter bastard though dry»

Era esta a primeira frase do filme, dita após um encadeado de cores (vermelho, azul e laranja) introduzirem, ao som da música para o funeral da Queen Mary de Henry Purcell, um grande plano do rosto maquiavélico de Malcolm McDowell e iniciarem um longo travelling para trás, percorrendo todo o Milk Bar Korova.

Mesmo sem dominar muito bem na altura a língua inglesa (e ainda com a agravante do calão “inventado” para os diálogos) a expectativa foi largamente excedida - aquele punhado de imagens e sons deixou-me completamente siderado, desde a frase inicial até à derradeira «I was cured, all right!». Resultado: passei ali o resto do dia, tendo visto o filme mais duas vezes de seguida. E nas vésperas de regressar a Portugal, alguns dias depois, iria ainda despedir-me num quarto e último visionamento e comprar também o LP da banda sonora para me acompanhar na viagem (depois, ao longo dos anos, perderia de vez a conta das vezes a que assisti a este filme – mas têm sido umas larguissimas dezenas).

Felizmente a censura então existente em Portugal não chegava ao ponto de nos impedir de viajar e por isso abençoada hora a que resolvi ir a Londres; é que, passado pouco tempo, foi mesmo o próprio realizador quem mandou retirar o filme do circuito de exibição em Inglaterra devido inclusivé a ameaças de morte frequentemente recebidas. Na altura Kubrick afirmou que apenas depois da sua morte o filme poderia regressar aos écrans ingleses. O que veio efectivamente a suceder - só após o falecimento do realizador, a 7 de Março de 1999, é que "A Clockwork Orange" voltou a ser exibido legalmente em Inglaterra – foram 25 anos em que muita cópia pirata deve ter circulado de mão em mão. Em Portugal, entretanto, teve de ser feita uma revolução para o filme poder pisar solo lusitano, em Novembro de 1974 (em Moçambique apareceu ainda antes, em fins de Julho, onde o vi mais duas vezes no Teatro Scala de Lourenço Marques - lembro-me perfeitamente de ostentar para com os amigos uma atitude um tanto ou quanto "superior", por já ter visto quatro vezes algo que eles iam assistir em primeirissima mão e cerca de um ano depois!)

Muitas foram as discussões, as mesas redondas que em diversos países foram confrontando os aspectos sociais, morais e políticos que o filme abordava. O próprio Kubrick contribuía, embora involuntariamente, para esses intermináveis dossiers de opinião através das várias entrevistas que concedeu na época. Essas questões, de interesse reduzido ou mesmo nulo para a compreensão do filme, andavam sempre à volta da violência ou da frágil flor de estufa do chamado livre-arbítrio. E os debates eram tanto mais anacrónicos quando eles próprios aparecem corporizados no próprio filme (nas figuras do capelão, do ministro e do escritor, entre outros). 

Nada disto interessava realmente, porque sendo o filme sempre circular, todas as teses e todas as antíteses se anulam ou voltam para trás; de facto, os polícias comportam-se como vadios e os vadios passam a ser bravos polícias. O ministro do Interior conservador e o escritor trabalhista manipulam Alex da mesma forma. Esta forma circular do filme acentua ainda a busca sempre recomeçada e nunca satisfeita do desejo: a sexualidade instaura-se pela via da carência. Se o percurso de Alex é completamente frenético, entre a imaturidade e o desejo nunca satisfeito, é porque ele tem tudo a dar e a receber ao mesmo tempo de si mesmo. Alex tem de inventar completamente o seu Édipo, se assim se pode dizer, porque tem como progenitores uns pobres de espírito.

“2001” foi até onde Hollywood nunca chegou e “A Clockwork Orange” agita-se alegremente onde Hollywood mil vezes nos conduziu: à violência, ao espectáculo, à sublimação, à catarse..., mas reinventa-os! Kubrick mistura livremente o chocante e o irónico com o humor negro. O personagem do guarda da prisão (Michael Bates) parece saído directamente dum sketch dos Monty Phyton, enquanto que os pais de Alex são basicamente estúpidos e embuídos de um sentimentalismo piegas. No quarto Alex tem uma escultura representando um conjunto de Cristos em posição de chorus line e comete um assassínio com uma escultura fálica.

A contribuição de “A Clockwork Orange” para a quebra de antigos tabus no Cinema não foi feita apenas através da nudez e da violência sexual apresentadas, mas sobretudo pela estética geral do filme onde se destacam os originais e bizarros cenários e uma atitude misantrópica que envolve anarquia, sadismo, comédia negra e um profundo cinismo do poder governamental. Neste filme a sistemática desmontagem dos mitos e dos símbolos, das instituições e dos seus processos tem uma dimensão épica.

E esse processo é-nos apresentado em sucessivos quadros em que, à importância da imagem, da cor, do movimento e das palavras, a música e a sonoridade assumem integralmente a importância da sua parte. Filme de som, de sonoridade, em que a música é projectada para além do espaço criado pelas imagens e para além do espaço imaginado pelo espectador.

Ainda as palavras de Kubrick: «as aventuras de Alex são uma espécie de mito psicológico. O nosso subconsciente encontra alívio em Alex como o encontra nos sonhos. Sofre ao ver Alex amordaçado e castigado pelas autoridades, enquanto uma boa parte do nosso consciente confessa que é necessário que assim seja». Esta afirmação de Kubrick contem a ideia retomada de diversas maneiras pelos críticos: O público que aplaude uma dada passagem violenta ou erótica não se apercebe que o sujeito do filme é ele próprio... jogo irónico de reflexos entre o público e o objecto da sua fascinação - o sexo e a violência.

CURIOSIDADES:

- Kubrick chegou a afirmar que se Malcolm McDowell não se encontrasse disponível, provavelmente nunca teria realizado o filme. O realizador tinha visto quatro ou cinco vezes “If” (um filme de Lindsay Anderson, que acabara de lançar o actor num personagem – Mike Travis – retomado depois em “O Lucky Man” e mais tarde em “Britannia Hospital”) e só descansou quando conseguiu a colaboração de Malcolm.

- As esculturas no Bar Korova são da autoria da artista Liz Jones, que se inspirou em trabalhos de Allen Jones.

- Devido à coagulação do leite sob as luzes do estúdio, Kubrick exigiu que de hora a hora todos os copos fossem esvaziados, lavados e enchidos de novo. Nas paredes do Bar encontram-se diversos quadros, um deles a pintura de uma mulher nua. Esse mesmo quadro aparece em “The Shinning”, realizado por Kubrick em 1980.

- No livro, o apelido de Alex nunca é revelado. "DeLarge" é uma referência a uma passagem no livro na qual Alex se denomina a si próprio "Alexander the Large" enquanto se entretem a violar duas moças de 10 anos (no filme têm bastante mais idade).

- Durante a filmagem da cena do tratamento Ludovico, Malcolm McDowell sofreu um arranhão numa das córneas, tendo ficado temporariamente cego. Na cena da humilhação em palco partiu duas costelas. E na cena em que os antigos compinchas (agora polícias) lhe mergulham a cabeça num fétido bebedouro de porcos, ia-se afogando dado toda aquela sequência ter sido filmada num só take, sem interrupções.

- A cobra de estimação de Alex (Basil) foi introduzida por Kubrick no filme ao aperceber-se de que Malcolm tinha a fobia de répteis.

- A banda sonora de “2001: A Space Odyssey / 2001: Odisseia no Espaço” (filme realizado por Kubrick em 1968) encontra-se bem visível no escaparate da loja de discos. Outras capas de discos que com alguma atenção se podem ver na loja: “Lorca” (Tim Buckley), “Atom Heart Mother” (Pink Floyd), “Déjà Vu” (Crosby Stills Nash & Young), ou “After The Gold Rush” (Neil Young), tudo albuns de 1970.

- Antes de Kubrick se envolver no projecto, Mick Jagger chegou a ser abordado para o desempenho principal, ficando os droogs a cargo dos restantes Stones. Tim Curry e Jeremy Irons recusaram também o papel.

- A cena de violação em casa do escritor é baseada num ataque que quatro GIs americanos levaram a cabo contra a mulher do autor do livro, Anthony Burgess, quando o casal se encontrava a viver na Malásia. Em consequência dessa agressão mulher viria a sofrer um aborto.

- No filme, as referências fálicas abundam: a cobra a subir por entre as pernas da mulher do poster; os chupa-chupas das moças na loja de discos; a ponta da bengala de Alex; o objecto de "arte" usado por Alex para matar a mulher dos gatos.

- Malcolm McDowell escolheu a canção "Singin' in the Rain" para entoar durante a cena da violação, porque era a única da qual sabia a letra, resolvendo deste modo o problema de Kubrick que já desesperava pela melhor maneira de filmar essa cena.

- O automóvel usado pelo gang chamou-se “Adams Probe 16” tendo só sido feitos três modelos.

- Para filmar a tentativa de suicídio de Alex, sob a perspectiva do próprio, foram atiradas 6 câmeras Newman Sinclair do edifício até que se conseguisse captar a chegada ao solo em posição frontal.

- De acordo com Malcolm McDowell a cena acelerada de sexo a três, ao som da “abertura de Guilherme Tell”, e que no filme dura 1 minuto e 20 segundos, levou 28 minutos a ser filmada.

- A cena em que Julian (um treinador de body building chamado David Prowse) leva Alex ao colo desde a entrada até à sala interior da casa do escritor foi filmada 48 vezes. Prowse ficou de tal maneira exausto que Kubrick "condescendeu" um pouco na filmagem da cena seguinte em que Prowse transporta o escritor em cadeira de rodas – foram apenas necessárias 6 takes.

- A linguagem falada por Alex e o seu bando foi inventada por Anthony Burgess, que a apelidou de "Nadsat": uma mistura de inglês, russo e calão. Algumas das palavras são tiradas directamente da língua russa: droog (amigo), malchick (rapaz), korova (vaca) ou moloko (leite). Kubrick chegou a recear o uso excessivo de tal linguagem no filme, tornando-o pouco perceptível para o público. Tal receio veio a revelar-se totalmente infundado.

- O nome do filme, "A Clockwork Orange", é baseado numa expressão coloquial britânica, «as queer as a clockwork orange» («tão original como uma laranja mecânica»).

- O filme foi nomeado para 4 Oscars: Filme, Realização, Montagem e Argumento-Adaptado, não tendo conseguido qualquer uma das estatuetas. Mais uma vez a Academia mandava às urtigas um filme charneira da história do Cinema. Tal como em Inglaterra, onde também só teve direito a nomeações (sete), para os BAFTA. Prémios só viriam da parte de críticos (de Nova Iorque e Kansas City) e jornalistas (do Sindicato Italiano).

- Em 2007, o American Film Institute classificou “A Clockwork Orange” no 70º lugar dos Melhores Filmes de Todos os Tempos.

3 comentários:

JC disse...

Visto hoje, parece-me um filme demasiado datado, já sem o radicalismo e o conteúdo provocatório de então. Uma curiosidade: Warren Clarke pode ser hoje em dia visto regularmente na TV no papel de Detetive Superintendent Dalziel, na excelente série policial da BBC Dalziel and Pascoe

Pedro Emanuel Cabeleira disse...

Excelente testemunho e abordagem sobre uma das mais brilhantes obras da história do Cinema. Tal como Kubrick acredito que um filme deveria ser mais como música de que como ficção, e se um filme é mais como música, então ver Kubrick é como ouvir Beethoven, e ver "Laranja Mecânica" é tão sublime como saborear a Nona.

Anónimo disse...

David Prowse(Julian), que carrega Alex nos braços, pouco depois faz um dos mais marcantes personagens do cinema, encarna Darth Vader.